domingo, 4 de julho de 2010

Boneca Russa


  
Na Itália pós-fascista, um milanês construiu um poderio têxtil, uma mansão mussolini e um clã de três gerações. Não sem atropelos. Eu sou o amor revela com calma como um império aniquila valores e pessoas, nos negócios e na família. E como mundando uns, mudam os outros. O mundo industrial transforma-se com a globalização e corre uma narrativa paralela, de pormenor antropológico, sobre privilégios de classe e mudança social. O universo familiar também se metamorfoseia. Logo na inicial festa de anos do chefe de família, percebe-se como um patriarcado anula alguns dos seus próprios elementos e que algo leveda debaixo da aparência de lustres e espelhos: coligações, lealdades, sacrifícios. Sobretudo, ânsia de libertação. Aliás, Eu sou o Amor começa com um aniversário, como se festejasse a vida, quando à mesa se sentam mortos. E termina com um funeral, como qualquer coisa fenecesse mas quando, finalmente, algo nasce. O quê? A personagem que Twilda Swinton interpreta de modo ímpar e que passa de prisioneira de luxo a autora da sua vida.
Essa Emma foi reprogramada para ir de filha de um artesão russo a nora de um magnata europeu. Na pátria, deixou a sua identidade, o seu nome. O marido não lhe mudou só o apelido. Passou a ser outra, um autómato italiano perfeito, que cumpre meticulosamente o quotidiano agora ainda mais vazio com a adultez dos filhos. É uma boneca russa, condição reforçada, por exemplo, pelas cenas em que a criada ou o marido a despem como se fosse um modelo de trapos, pelo “Tu não existes” que esse lhe arremessa, ou pela breve audição da ária La mamma morta.
Mas esta mulher é também uma boneca russa porque tem, afinal, várias camadas. Uma das que sobreviveu à arrancada das origens, foram os paladares e aromas, memórias indeléveis. São elas os mediadores para o seu resgate, apaixonando-se por um jovem cozinheiro. Porém, a ênfase nos sentidos não corresponde à batida afirmação da sensualidade e remete para a importância simbólica das refeições nos rituais familiares, para os laços e responsabilidades numa tribo. Daí que a loiça se parta quando surge um prato com ingredientes secretos da Rússia. Quase tão impossíveis de despir como todas essas câmaras que Emma guardou debaixo da sua pele milanesa. Revelada essa multidão, ela diz  à família: “Vocês já não sabem quem eu sou”. E quem é ela? O amor.
Esta última obra deste cineasta italiano é discreta, como a cozinha do amante. Sofisticada, sem a arrogância da nouvelle cuisine ou da nouvelle vague. Com raízes regionais, mas sem o agreste dos pratos típicos ou do neo-realismo. Não é perfeito. Mas o amor também não. E ainda bem.

Gosto