«O mesmo que
Portugal até aqui era, já ele não pode ser.»
Almeida
Garrett, Portugal na Balança da Europa
A sociedade
portuguesa não voltará a ser o que era, nem antes nem depois de 25 de Abril.
Nem antes nem depois da entrada na EU, cujo primeiro ciclo de 25 anos terminou
com a assinatura do Tratado Orçamental. Espera-nos o mar ignoto, por muitos
sextantes e bússolas que fixem alturas e direcções. Não o sabem os portugueses,
como não o sabem os governantes rotineiros, e os responsáveis dos organismos
internacionais como o FMI, a Comissão Europeia, o ECOFIN, o EUROGRUPO. Os
britânicos só o sabem um pouco mais porque são insulares e mantiveram intactos
os poderes do Banco de Inglaterra, com que contam para vencerem o referendo
sobre a independência da Escócia em Setembro.
Acabou
informalmente o melhor ciclo da participação da República Portuguesa na EU.
Entrámos havia ainda a Europa Ocidental e a emulação Leste-Oeste. Cinco anos
depois chegaram a Alemanha reunificada e o colapso soviético. Pensava-se que as
clivagens inter-europeias estavam ultrapassadas, pese embora o facto de se terem
imediatamente criado alguns precedentes de alterações de fronteiras das quais
ainda hoje não sabemos toda a potência que podem desencadear. Mais recentemente
começou-se a desenhar uma nova divisão cultural entre povos do norte e do sul
da Europa, até que se chegou à separação entre países credores e países
devedores no interior da zona euro.
A União
Europeia está sem rumo e a sociedade portuguesa também. Basta observar como a
Alemanha, com a sua particular responsabilidade de ser «a potência hegemónica
acidental, ou furtiva», leva três meses para formar governo e esteve dependente
de um referendo interno no SPD para formalizar o negociado com a CDU. Um
referendo na Alemanha, mesmo só no interior de um partido, é uma revolução nos
hábitos culturais do poder político germânico nascido em 1949.Tanto mais que os
números do referendo a autorizar a direcção de Sigmar Gabriel são robustos: dos
cerca de 500.000 militantes participaram 475.000 na original iniciativa, ou
seja 78% de sociais-democratas. Destes, 76% deram o seu aval à «Grande Coligação»,
que fica assim sob verificação partidária! Como por encanto ninguém se apercebe
que pode haver modificações no funcionamento dos partidos em Berlim…Mas basta
observar estes três meses de rotina interna para nos apercebermos que não
haverá impulso externo alemão suficientemente forte e decisivo nos próximos
tempos com a dupla Merkel- Shauble a manter a ortodoxia orçamental. Mesmo a
Alta Autoridade Bancária ficará cativa do Bundesbank e não se aplicará à
sacrossanta banca alemã desde o nível internacional ao nível cantonal. É para
isso que a chanceler e o seu ministro das Finanças estão lá.
De tudo isso
se ressente a sociedade portuguesa sem referências seguras dentro e fora do
país. Vamos «regressar aos mercados» em 2014 num trapézio com uma rede
rarefeita, tecida pelo EUROGRUPO - ou seja por uma nova troika ad-hoc isenta
das perplexidades do FMI - em sucessivas reuniões, de finais de Janeiro até 1
de Abril. Há tudo a temer desses ministros das Finanças sem pinga de sentido do
que possa ser o «interesse geral» da zona euro. Disse-o desassombradamente o
ministro da República de Irlanda quando anunciou o desinteresse de Dublin por
um «programa cautelar» porque receava que esse processo negocial- de que o seu
governo tudo desconhecia ainda no final de Novembro- pudesse acabar «pelas três
da manhã, em Dezembro, transformado numa espécie de nova crise irlandesa por
muitos ministros sequiosos de aparecerem como campeões do rigor perante a
opinião»! Não estaremos isentos dessa oscilação entre um paternalismo patético
e ofensivo e a pressão para fazer de Portugal uma cobaia do primeiro ensaio
intergovernamental do até aqui virgem Mecanismo
Europeu de Estabilidade Financeira.
Sem novas eleições em Portugal chegaremos
fracos e desarmados a essa prova de fogo da invenção de um programa cautelar
intergovernamental.
Ainda por
cima somos uma população em decadência, com cada vez menos habitantes, com uma
baixa de natalidade superior a qualquer outro período contemporâneo a que se
hão-de acrescentar as estimativas da Comissão Europeia apontando para um
decréscimo da população residente de cerca de 130.000 pessoas empurradas pela
«ordem para emigrar» explícita em algumas medidas do «Memorando de Entendimento».
Portugal será assim o único país sob resgate a perder recursos humanos até
2015, uma altura decisiva para as tarefas de reconstrução e crescimento. Só
alguns países do leste nos acompanham nessa triste procissão: Bulgária,
Croácia, Estónia, Hungria, Letónia, Lituânia e Roménia.
Não há
dúvida que o factor trabalho segue espontaneamente o factor capital quando a
grande política falha nas suas medidas de coesão interterritorial. Basta
lembrar Delors para nos recordarmos do que foi um bom esboço de política
comunitária de coesão e de desenvolvimento assente nos fundos estruturais e no
recurso ao BEI.
Todos
concordam que a execução do Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF)
se tem desenrolado num ambiente desfavorável, e se tem processado
primordialmente através de uma forte contracção da procura interna. Parafraseando
um precursor da austeridade à portuguesa «A passo lento mas firme saímos da
sociedade de consumo!» Com nuances e por categoria de rendimentos, está claro. O
governo de Passos Coelho tem uma concepção de um Estado rarefeito, próprio das
antigas províncias ultramarinas, em que as funções de soberania eram
inexistentes e as outras assumidas em grande parte pela metrópole europeia, e
daí essa complacência com o desarmamento das competências de um Estado europeu
como era o português quando a sua equipa chegou ao poder.
Também não o
atrapalha a saída da situação de resgate com o país empobrecido na sua
capacidade produtora, inundado sobretudo de petróleo refinado que exporta para
mercados de ocasião, nem sabemos ao certo quais as suas perspectivas e duração.
Como não o atrapalha uma taxa de desemprego na ordem dos 15%, e muito superior
entre as camadas jovens que procuram um primeiro emprego. Todos esses factores
negativos muito nos irão prejudicar quando chegar a altura do aproveitamento
pleno da recuperação económica e do crescimento via investimento privado ou
público.
Não que se
esteja à espera de um novo surto de obras públicas tão cedo, embora a actual
paralisia completa desse volante do crescimento só possa significar
incompetência governamental para brigar junto da Comissão Europeia novos
programas com um mínimo de contribuição financeira nacional, a ser colmatada
pelos recursos do orçamento comunitário com regulamentos para a execução das
«Perspectivas Financeiras para 2014-2020», e com o recurso ao FED tão
permissivo, aliás, inutilmente em relação às necessidades de tesouraria da
Ucrânia…
O ADVENTO do
APÓS TROIKA
Foi o PR
Cavaco Silva quem proclamou primeiro a chegada do tempo político do advento
após-troika, tendo mesmo convocado o Conselho de Estado para o efeito.
Embrulhou-se com o que podia ser uma preparação da sociedade política, e
ferrou-se à estreita ideia de que essa preparação se resumiria ao
estabelecimento de consensos interpartidários, numa altura onde já nem havia acordo
de concertação social animado pelo governo, e a oposição estava sob a pressão
das greves e manifestações num clima de descontentamento crescente da população
que ainda no ano anterior se voltara a chamar POVO.
O resultado
da iniciativa do PR foi assim paradoxal: muitos conselheiros não apreciaram o
debate a que foram forçados nos termos em que Cavaco Silva o impusera na agenda
dessa reunião, e os partidos quedaram-se nas suas posições. O anúncio da
necessidade de preparação para o após troika pelo PR provocou, pelo contrário,
uma paralisia geral dos protagonistas dos órgãos de soberania políticos que
ainda hoje se mantém.
O período do
advento para a saída da troika, e o consequente regresso aos mercados, foi
assim em grande parte perdido no segundo semestre de 2013 pela má apreciação
prospectiva de Cavaco Silva e seus conselheiros, e pela paralisia que
introduziu no sistema da governação, prolongando por expedientes artificiosos a
coligação PSD-CDS. Teve tudo nas mãos para criar novas condições de governação
que preparasse melhor a saída da troika, com as duas cartas de demissão dos
ex-ministros das Finanças e do MNE. Bastaria ter levado a sério o testamento de
Vítor Gaspar de 1 de Julho que escreveu ser necessário «a rápida transição para
uma nova fase do ajustamento: a fase do investimento! Esta evolução exige
credibilidade e confiança.» Exactamente o que falta ao governo de Passos Coelho
e à sua coligação com Paulo Portas.
Obcecado com
a necessidade de consensos a estabelecer entre os partidos «do arco da
governação», Cavaco Silva não sabe como os estabelecer, ou se quer mesmo
fazê-los. Uma coisa é certa, pela parte de Passos Coelho este não irá muito
mais além do que esperar que o IGCP consiga colocar uns títulos no mercado dos
«institucionais», trocar umas maturidades pelo aumento sedutor das taxas de
juro, e esperar que o ECOFIN e o EUROGRUPO ponham à disposição do Tesouro uma
linha de crédito de alguns milhares de milhões.
Passos
Coelho é o principal obstáculo a qualquer entendimento mais abrangente para
dotar a República Portuguesa de um governo capaz de responder ao choque da
saída da troika. Devia sair com ela.
Por José Medeiros Ferreira.
Publicado no Correio da Manhã.