terça-feira, 22 de junho de 2010

Saramago: saber renascer*

Fiquei genuinamente satisfeito pela atribuição do Prémio Nobel da Literatura a José Saramago. Por ele e pela língua portuguesa.
Por ele: embora o personagem não me seja inteiramente simpático, e tenha detestado e combatido a sua passagem pela direcção do Diário de Notícias, confesso que há aspectos na vida dele que me suscitam um profundo reconhecimento. Desde logo pela sua afirmação cultural individual: José Saramago nada deve ao sistema escolar português selectivo, elitista e abundantemente estéril como a ditadura do pensamento que o ergueu.
Nem os estudos secundários os completou o Nobel da língua portuguesa. Não foi pois o sistema formal do ensino que lhe suscitou a gramática e a criatividade artística. José Saramago, Prémio Nobel, é uma obra exclusivamente sua.
Esta vitória do ribatejano, precocemente envolvido na cidade de Lisboa e na necessidade de ganhar o pão de cada dia, sobre a fatalidade de uma vida mecânica e da segregação cultural deve-se certamente a um sopro especial do seu espírito, mas sobretudo à vontade de combater a injustiça social.
Seja como for, a criatividade literária e artística de José Saramago não lhe foi facultada ou induzida pelas escolas portuguesas do tempo da ditadura. Numa terra de doutores, ele afirma-se do lado do país para quem a escola não chegou.
Leu muito, é o próprio que revela. Na entrevista publicada no jornal madrileno ABC da última sexta-feira - uma entrevista muito interessante -, José Saramago repete por ordem os seus escritores de referência: Gogol, Kafka, Montaigne, Cervantes e o padre António Vieira.
Curiosamente, afasta Fernando Pessoa dos seus monumentos, mas Vieira lá está a explicar o gosto pelo barroco que me retrai.
Percebe-se o apoio estilístico no escritor, que acede à literatura um nada antes da ave de Minerva lhe aparecer no horizonte.
Deriva dessa serôdia colheita artística outro dos motivos da minha admiração pessoal por José Saramago.
Por acaso das circuntâncias creio ter assistido ao desabrochar de Saramago como grande escritor no início dos anos 80.
Nesses anos de "refluxo revolucionário" ou de "normalização democrática", conforme as perspectivas, passávamos grande parte das nossas férias de Verão na Arrábida, na Estalagem de Santa Maria, entregues à qualidade de vida e aos cuidados de Sérgio Gama e de toda a família.
O paraíso na sua eternidade ter-se-á modelado naqueles instantes.
Na ampla esplanada, os conhecedores escolhiam os seus lugares. Recatado, José Saramago trabalhava, e só o podia fazer até à meia-noite, hora certa para Sérgio Gama mandar todos para a cama ao desligar o motor que fornecia a energia eléctrica. Mais expansiva (ou mais crente), Isabel da Nóbrega descobre-nos o segredo: o ex-director do Diário de Notícias aceitara uma encomenda do Círculo de Leitores para escrever um livro sobre as diferentes regiões de Portugal e estava então a terminá-lo. Isabel da Nóbrega afiança-nos (a mim e a Maria Emília) que o José está a amadurecer e que as letras portuguesas se irão enriquecer.
Fiquei sensibilizado. Uma mulher verdadeiramente culta é por excelência uma anunciadora. Olhei de longe para Saramago e vi um homem que queria renascer de outra maneira na república. E de facto os anos 80 vão revelar aos portugueses um escritor pujante, trabalhador e original, que há-de conseguir o primeiro Nobel da Literatura para a língua portuguesa. Contra muitos, dentro e fora do País. Saramago é um insubmisso aos poderes constituídos. Ele personifica o esforço do indivíduo para se manter livre numa sociedade adversa.
Como escrevi no início deste artigo, fiquei satisfeito por ele e pela língua portuguesa. Por ele algo mais haveria a dizer e muito será ainda dito por outros. Pela língua portuguesa que levou cem anos para alcançar este reconhecimento internacional.
Recordo as más memórias das correntes pró e contra Aquilino Ribeiro, pró e contra Miguel Torga num país ainda provinciano e desconhecedor do que o mundo pensava dele. Depois as probabilidades de um Nobel deslocaram-se para a literatura brasileira, e de novo para a nossa.
Há males que vêm por bem: o atraso na atribuição do Nobel da Literatura permitiu que este chegasse quando a língua portuguesa mais dele precisava para a sua afirmação como língua internacional.
É verdade que a língua portuguesa é falada por cerca de 200 milhões de pessoas, mas é falada para dentro desse universo, sendo a sua saliência exterior quase nula.
O Brasil é a matriz dessa atitude: a língua portuguesa é um factor de comunicação e coesão internas sem que as elites brasileiras a promovam como língua internacional. O mesmo se passa nos países africanos, embora com a particularidade de a língua portuguesa ser uma das línguas oficiais da OUA.
O Estado português acaba assim por ser o mais interessado no reforço da sua língua oficial como língua internacional, e desde logo na Europa, onde está deveras ameaçada. E é bom aproveitar estes momentos de euforia nacional para alertar os mais distraídos sobre os perigos que se avizinham nesta matéria.
É verdade que o Prémio Nobel da Paz já agraciou duas personalidades que falam português, como Ximenes Belo e Ramos-Horta. Porém, agora, o da literatura pode afirmar a nossa língua no século XXI, como João de Barros e Camões contribuíram para que ela se não perdesse entre os séculos XVI e XVII.

* Artigo de José Medeiros Ferreira, no "Diário de Notícias" de 13 de Outubro de 1998 e aqui publicado a seu pedido.

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