quinta-feira, 12 de junho de 2014

Espírito de tragédia e comédia


Parece que muitos estão espantados com a fraca empatia que o desmaio de Cavaco Silva provocou. Mas talvez não existam motivos para surpresa.
Todas as sociedades precisam de construir modos de lidar com emoções básicas, canalizando o desejo/perda/entusiasmo de forma a que promovam a reciprocidade ou a compaixão e contendo/transformando o medo/ansiedade/aversão: “Todas as sociedades precisam então de algo como espírito da tragédia e o espírito da comédia – o primeiro modelando a compaixão e o sentimento de perda, o último indicando formas de elevar-se acima da aversão” (Nussbaum, 2004). Aristóteles na sua Retórica, incluía dois grupos de compaixão trágica,  o primeiro reportando-se a coisas como morte, lesões corporais, velhice, doença (o caso de Cavaco Silva). O segundo a coisas más pelas quais a sorte é a responsável como a fealdade. Foi Hegel quem enfatizou o significado político da tragédia que mostra como são duros os resultados que se colhem quando duas esferas da vida se opõem e se tem de escolher entre elas. Ou seja, a tragédia funciona na medida em que leva quem assiste a refletir sobre como seria se as pessoas não tivessem que fazer tais escolhas, se fosse possível sanar as contradições e reconciliar as forças. Por exemplo, conciliando religião e Estado, emancipação da mulher/família. A tragédia e a comédia são, assim, poderosas ferramentas para suplantar a segmentação social.

            A própria seleção natural favorece os animais que praticam o altruísmo recíproco (como os elefantes) especialmente quando os benefícios da cooperação excedem os custos. Para os humanos, a comunidade oferece tantas vantagens de proteção mútua, disponibilidade de alimentos, compaixão e justiça que evolutivamente também é altamente proveitosa. Contudo, promover a compaixão implica que o objeto dessa compaixão não seja percepcionado como sendo o causador da sua própria tragédia (mesmo entre os macacos-rhesus tal acontece) e, preferencialmente, que a situação seja tida como de “possibilidades semelhantes” (“podia ser comigo”). Implica seriedade/semelhança e ausência de culpa. E essa compaixão recusa o medo/aversão próprios mas projetados sobre o outro.
Ou seja, empatia e compaixão podem ser bloqueadas quando se considera que a situação difícil em que o indivíduo se encontra é da sua própria responsabilidade. Por exemplo, o mentiroso discurso do “vivemos acima das nossas possibilidades”, o discurso da culpa, facilmente trava a empatia e compaixão que se pudesse sentir pelos desempregados, precários, falidos. Cavaco Silva não foi alvo de compaixão porque é perspetivado como o responsável pela sua próprio mal-estar. Porque não contribui para a solução dos problemas do país, o momento de tensão que pode estar a passar é atribuído à responsabilidade do próprio. Pior. A ausência de compaixão perante Cavaco Silva é também reflexo de uma política que tem promovido sistematicamente a culpa e aversão, em vez do espírito de tragédia e comédia. E este é um dos piores resultados da política de austeridade: a destruição final do que restava de um certo modelo de sociedade.

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